
Música é algo absurdamente familiar para mim. Por mais que eu divague sobre isso ou tente entender qual o sentido ou como essa relação com as canções surgiram, nunca vai ter uma explicação concreta. E pra ser bem sincera, isso pouco importa
A música tem essa subjetividade intrínseca, as entrelinhas não escritas, mas contidas de alguma forma entre os versos quando eles se deparam com nossos ouvidos e enchem nossa mente. Música não é raciocínio lógico ou fórmula matemática, está para além de axiomas e postulados. As canções são uma enorme porção de inspiração de alguém e uma conspiração do universo para que nos toque no exato instante da necessidade do sentir. Chegam e nos deixa a mais pessoal das mensagens: eu te traduzo, pode ficar em silêncio.
Quando as canções passam a fazer parte do nosso cotidiano desde muito cedo, podemos traçar um caminho onde cada passo é seguido por uma nota, um riff e uma melodia. As letras são as nossas falas em vozes múltiplas e que mesmo não escritas ou ditas por nós, correspondem fielmente a cada pensamento que circulou em nossa cabeça e poderia tranquilamente ter saído por nossa língua.
Marisa Monte foi a pedra fundamental. Na construção de uma consciência musical que começou no carrinho de bebê, ela foi a que chegou primeiro, ainda para me ninar. Para mim, ela sempre será música afetiva. Tem aquele embalo de berço, é sono de criança de colo após o alimento. Não dá pra explicar, porque rememora um período para o qual eu retornaria sem pensar duas vezes. Uma fase sem atrelo a responsabilidade, sem traumas e desconhecendo a maldade humana. Minhas melhores memórias têm o som de Cor de Rosa e Carvão.
Ouça minha playlist de MPB: https://tinyurl.com/Um-pouquinho-de-Brasil
Os primeiros passos de um ser humano podem ser errantes, mas tendem a definir os caminhos que ele tende a querer seguir. Tomo nota disso quando percebo que o começo da caminhada veio permeada de regionalismo. Eu enterrei meu umbigo na minha terra. A poeira do chão da minha terra grudou na minha sandália e não há de sair nunca. Parece infantil, mas Frevo Mulher, na voz de Amelinha, me emociona tanto. É abstrato e nem consigo transpor isso para frases. Assim como Alceu Valença e Geraldo Azevedo, é algo que não lembro onde começou, sempre esteve aqui.
Nesse mesmo sentido, Galope Rasante e Vila do Sossego, de Zé Ramalho, também batem forte aqui dentro. As canções remetem ao caminho sinuoso até o interior dos meus avós, era exatamente o que tocava no carro durante essa viagem. É aquela fase da vida que a gente desconhece a real importância das coisas, incluindo a parte que odiávamos fazer esse caminho que hoje fica só na lembrança.
Foi nessa época também que eu me deparei com as antigas fitas cassete da minha mãe e do meu primo Toni. Uma em especial era tocada frequentemente, com direito a performance de lipsync com o controle remoto. Lado A e lado B tomados por uma gravação dos hits do Guns N’ Roses. Agora a banda virou coisa de cringe que sabe alguma coisa de Rock, talvez seja o que a galera velha guarda também sempre pensou sobre eles, mas para mim naquele momento era uma descoberta incrível. A gente quando não dá a sorte de começar a vida por Led Zeppelin, tem de aprender a curtir o ciranda cirandinha.
Ouça minha playlist 90’s kid: https://tinyurl.com/rock90kids
Nessa época também veio o grunge e outras pegadas de rock estadunidense. A vontade de correr chutando lixeiro era seguida pela guitarra de John Frusciante. Otherside é um clássico de quem se apaixonou pelo rock desbocado do RHCP no final dos anos 90 e começo dos anos 2000. Era a tradução de uma rebeldia com causa, mesmo que silenciosa e não aparente, mas que desentalava na voz de Anthony Kiedis. Era uma rebelião interna que explodia no rock de skate da Califórnia.
Hoje sou devota de Maria Bethânia e rezo sua discografia nos momentos de ânsia e de calmaria. Junto a ela também roga por mim Billie Holliday e todo songbook de Cole Porter em novena na voz de Ella Fitzgerald. A música é como oração, seja como regozijo ou uma prece em desespero. As canções nos envolvem, nos embalam e nos cuidam a cada nota.
E foi entre tantas canções que me ensinaram e tantas outras que eu aprendi por conta própria que a música se tornou a linguagem mais possível para mim. Sem nunca ter aprendido tocar um instrumento tão bem, sem ter sequer a desenvoltura para um karaokê, eu ainda me sinto afagada por cada acorde e sílaba cantada. Foi a primeira linguagem que eu aprendi e que hoje tento reverberar, como escriba, para tocar outras pessoas.
In memoriam de Vicente de Paulo Melo, jornalista, ativista político e um defensor das artes e da democracia. A quem tive a honra de ter como fiel leitor e tio-avô.
Alice Mendes Rocha: Mestra em História, redatora de conteúdo e sommelier de água com gás. Nascida no “país” Pernambuco, foi embalada pelo radinho da mãe e desde então não largou mais a música. É uma curiosa por sonoridades do passado e entusiasta da Nova MPB. Devota de Maria Bethânia.
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